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America's Game I: A Doutrina do Destino Manifesto e o orgulho patriótico cria o mais americano de todos os esportes



Que o estadunidense é o povo mais patriótico e apegado às suas raízes ninguém ousa duvidar. O orgulho de sua terra é inerente em uma nação que se desprendeu de seus colonizadores para se tornar potência mundial. E esse sentimento é tão imenso que se refletiu na maior paixão do país do Tio Sam: o esporte. O baseball nada mais vem a ser que uma adaptação do cricket britânico, enquanto o football é descendente direto do rugby e do futebol inglês (à época chamado de football association), tão amado em terras brasileiras. Ambos os esportes, além de tão conectados com o povo que os criou, tem outra similaridade: sua origem pode ser ligada diretamente à Doutrina do Destino Manifesto. E é exatamente esse o ponto de partida para o esporte que mais cresce em popularidade no planeta. Vamos a partir de hoje mergulhar no universo de uma das grandes representações culturais norte-americanas e destrinchar a história belíssima da bola oval. 

"God bless America and nobody else"


Imagine-se vivendo em uma das Treze Colônias nos primeiros anos do Século XIX. As tratativas para a aquisição da Flórida junto à Coroa Espanhola estão sendo feitas e há poucos anos se juntaram ao território norte-americano fatias gigantes de terra que vão da Louisiana ao Colorado, de Ohio a Montana, englobando o que hoje corresponde a cerca de metade do território nacional. Em breve serão anexadas as regiões ainda faltantes (que hoje correspondem aos estados de Oregon, Washington, California, Texas, Utah, Nevada, Arizona, New Mexico e Idaho, como visível no mapa abaixo). Há poucas décadas o país declarou independência ao domínio britânico e vai se consolidando no Novo Mundo. É sob este cenário que nasce a Doutrina do Destino Manifesto. Ela reza que Deus incumbiu a América de ser uma grande nação e expandir o seu território em todas as direções. Ainda que na época essa filosofia tenha sido combatida por muitos políticos, foi apoiada por outros. Até hoje ainda se nota resquícios dessa doutrina em discursos inflamados de fervor patriótico e com apelo ao divino por parte de certos candidatos a cargos públicos estadunidenses. O fato é que, como fogo que consome tudo que vê pela frente, os americanos conquistaram territórios pela força e pelo poder financeiro nas décadas seguintes e moldaram suas fronteiras como as conhecemos atualmente. E este sentimento pouco a pouco se alastrou por várias camadas da população. 

Mapa Destino Manifesto

"Sob o poder de Deus ela floresce"


A história está cheia de episódios onde uma faceta de determinado ocorrido tem ligação indireta com um terceiro evento, provocando ironia. É o caso da Universidade de Princeton. O tema deste subtítulo é o lema de uma das mais prestigiadas instituições educativas do planeta, membro da The Ivy League. Nota-se novamente a suposta interferência divina nos assuntos. Contudo, a grande ironia está em uma organização que leva Prince em seu nome - um título monárquico - ter criado a maior especificação esportiva do poder republicano e democrata das antigas colônias. Foi em um jogo entre estudantes das universidades de Princeton e Rutgers em novembro de 1869 que nasceu a primeira versão do America's Game. Se tratava de uma adaptação rudimentar do futebol, usando uma bola redonda, a qual não poderia ser carregada. Cada time contava com 25 atletas que só poderiam bater na bola para fazê-la avançar pelo gramado. O jogo terminou com o placar de 6x4 para Rutgers. Uma semana depois foi a vez de Princeton dar o troco e bater a rival por 8x0. 

Quatro anos se passam e novamente Princeton está nos holofotes da nossa saga. Junto com Yale e Columbia, outras duas membros da The Ivy League, uma reunião é programada para finalmente definir as regras do novo esporte. O objetivo era dissociar a imagem deste jogo dos desportos britânicos já conhecidos. Não por acaso ele recebe um nome bastante nativo: American Football, ou Futebol Americano. Porém, em mais uma das ironias que a história nos agracia, uma quarta Ivy League tinha outra ideia em mente. Harvard queria que o novo esporte permitisse que os atletas carregassem a bola com as mãos até o alvo final ao invés de simplesmente rebater a esférica. Nem é necessário comentar que foi exatamente o que se sucedeu com o passar dos anos. 

Dois anos mais tarde, em 1875 houve mais um avanço significativo. Um aluno de Yale chamado Walter Camp deu a ideia de se substituir o scrum do rugby (veja a imagem abaixo) pelo que viria a ser chamado de snap: passar a bola entre as pernas. A ideia era deixar o jogo mais organizado, e funcionou. Havia apenas um problema: alguns times usavam a estratégia para manter a posse eterna da bola, não havendo ganho de território nem tentativa de pontuação. O resultando era um maçante e agonizante 0x0. E é neste ponto que é incorporado o grande mérito dissociativo do american football em relação ao football association e ao football rugby, os primos britânicos. 

Scrum Teams versus Working Groups | Applied Frameworks

Um futebol mais americano que nunca antes


O conceito atual do futebol americano é extremamente simples: cada time possui quatro jogadas chamadas de downs para avançar dez jardas e manter a posse de bola ou é obrigado a devolver o elíptico ao adversário. E neste respeito, havemos de agradecer novamente a Walter Camp. Em 1882 o estudante sugeriu que cada equipe tivesse três oportunidades para avançar cinco jardas ou teria de devolver a bola. Com isso os jogos passaram a ter mais dinamismo e pontuações. Algumas destas pontuações, porém, eram bem diferentes das que estamos acostumados atualmente. Confira na tabela abaixo: 



Nasce no horizonte o século XX. O século das grandes inovações bélicas e dos maiores derramamentos de sangue que se há registro começou com mortes violentas em campos de futebol americano. Uma matéria do jornal Chicago Tribune de 1905 relata que aconteceram 18 mortes e 159 atletas feridos em decorrência do jogo. O fato levou o então presidente Theodore Roosevelt a adotar medidas drásticas e ameaçar banir o esporte. Esta ameaça levou diretamente a criação da NCAA, a National Collegiate Athletic Association (confira o texto focado no College Football onde dissertamos a criação da NCAA e dos tradicionais Bowls). A NCAA tinha em seu recém formado comitê para alteração de regras uma figura de sobrenome conhecido até os dias atuais: John Heisman. O homem que empresta seu sobrenome ao prêmio mais desejado do esporte universitário nacional foi o grande responsável por instituir a mais gritante diferença do futebol americano para com o rugby: a permissão do passe para frente. A estratégia, além de embelezar o jogo, teve caráter de segurança. Além disso, foi incluso um novo down para manutenção de posse de bola e as jardas necessárias para isso foram alongadas: agora seriam quatro descidas para obtenção de dez jardas. Em 1912 mais uma inovação para moldar o esporte à forma que estamos acostumados: o touchdown passou a valer seis pontos. Outras mudanças foram feitas com o passar do tempo e anualmente regras continuam sendo alteradas. Mas o jogo favorito da América finalmente tomava forma e o cenário se armava para a criação daquela que se tornaria a maior liga esportiva de todo o cosmos: a National Football League com todo o seu glamour e prestígio. Mas isso é assunto para o terceiro texto de nossa série. 


Confira aqui os demais textos dessa série:

America's Game I: A Doutrina do Destino Manifesto e o orgulho patriótico cria o mais americano de todos os esportes

America's Game II: NCAA: como um bando de jovens e uma atração turística de inverno transformaram o país

America's Game III: O ciclo da vida não perdoa nem mesmo a NFL




- Matheus Pereira de Pinho com a co-produção de Paulo Castro

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