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America's Game II: NCAA: como um bando de jovens e uma atração turística de inverno transformaram o país






Nada define melhor o College Football que a Bowl Season. O mês de dezembro é de deleite para os amantes da bola oval, mesmo aqueles que não acompanham com tanta regularidade o esporte universitário. Jogos acontecendo praticamente todos os dias até que finalmente sejam realizados os chamados "Bowls Grandes" - o grupo dos seis Bowls mais tradicionais. Não a toa o país estagna para assistir a esses jogos, sendo dois deles usados para as semifinais nacionais que definirão as duas universidades que irão disputar o título da temporada. Porém, assim como no artigo anterior falamos sobre como a influência do divino foi preponderante no surgimento do esporte em si, o ponto de ignição da maior tradição de fim de ano dos americanos foi um simples fenômeno da natureza: o inverno. 

Se Draft é alistamento militar, o General Inverno também se fez presente


A história prega constantes peças a olhares mais atentos. Todo ano centenas de jogadores do College Football são selecionados a jogar nas equipes profissionais da NFL via NFL Draft. Representantes de cada franquia profissional escolhem os jogadores que mais lhe agradam. O que muita gente não sabe, porém, é que a palavra "Draft" remete ao alistamento militar que ocorre em praticamente todas as nações do planeta. E onde tem exército, tem General, certo? Pois bem: Tanto Napoleão Bonaparte quanto Adolf Hitler tiveram o desprazer de serem derrotados pelo maior nome militar russo de todos os tempos, o General Inverno. Durante as campanhas militares de ambos o inverno se apressou a chegar antes do previsto e impedir uma possível dominação continental. No College Football também houve uma espécie de General Inverno jogando a favor de seu país. Anualmente a cidade de Pasadena na California organizava o Torneio das Rosas, uma competição com diversos esportes jogados ao ar livre como forma de mostrar aos lugares mais gélidos da América que Pasadena era uma excelente opção de lugar para se passar o inverno. Em 1902 o Torneio das Rosas decidiu incluir o futebol americano em seu programa colocando frente a frente uma equipe do leste e uma equipe do oeste americano. Naquele ano Stanford Cardinals (representando a California) bateu Michigan Wolverines pelo placar de 49x0. Porém, o jogo ainda tinha um baixo apelo e era perigoso (lembre-se que em 1905 o Chicago Tribune citou dezoito mortes em campo, como vimos no texto introdutório da série). Por isso o futebol americano acabou ficando de fora da programação por catorze anos. Em 1916, já muito mais seguro e atrativo, o esporte voltou a estar sob os holofotes de Pasadena que viu Washington State (leste) bater Brown (oeste) por 14x0. O interesse cresceu tanto que com o tempo foi necessário construir um novo estádio. O arquiteto responsável pelo projeto, Myron Hunt se inspirou no Yale Bowl, estádio da universidade de Yale para desenhar o que seria chamado de Tournament of Roses Stadium. Porém, não demorou muito para que o estádio arredondado recebesse o apelido que o caracteriza até hoje: Tournament of Roses Bowl, ou simplesmente Rose Bowl. E para aqueles que vibraram com Galvão Bueno gritando É TETRA! em 1994, saiba que aquele estádio onde Roberto Baggio isolou as chances de título da Itália é o próprio Rose Bowl. E por sinal, o Rose Bowl é o único estádio do planeta a receber uma final de Torneio Olímpico de Futebol Masculino (1984), uma final de Copa do Mundo Masculina da FIFA (1994) e uma final de Copa do Mundo Feminina da FIFA (1999), além de cinco Super Bowls, o último deles em 1993.

O Yale Bowl foi a inspiração usada para desenhar o Rose Bowl, o precursor da Bowl Season

É TETRAAAAAAAA
Com o tempo, outras regiões passaram a notar o sucesso dos Bowl Games, tanto desportiva quando turisticamente. Esse fator levou a disseminação dos jogos em várias cidades. Com o tempo, Dallas (Cotton Bowl), Miami (Orange Bowl), Atlanta (Peach Bowl), New Orleans (Sugar Bowl) e Phoenix (Fiesta Bowl) também organizaram seus próprios jogos, e claro, em estádios em formato de tigela, com exceção de Atlanta. Esses cinco, somados ao Rose Bowl foram os seis mais tradicionais jogos de fim-de-ano. A cada ano vemos dois deles serem escolhidos, de forma rotacionada, para sediar as semifinais nacionais do College Football Playoffs (que será abordado mais a frente nesse texto). Os quatro restantes mantém sua programação regular. Para exemplificar, veja a programação dos Bowls principais na temporada 2019 e seus critérios abaixo das fotos dos estádios originais.
Respectivamente: Atlanta-Fulton County Stadium, Miami Orange Bowl Stadium, Tulane Stadium (New Orleans), Cotton Bowl Stadium (Dallas) e Sun Devil Stadium (Phoenix)



BCS National Championship Game e College Football Playoff


Os Bowls no passado eram usados para definir de forma informal o campeão nacional. "Informal" pois não havia de fato um jogo que servisse a esse fim. O título era dado de forma subjetiva, por agências especializadas no futebol americano universitário. Porém, haviam alguns problemas. Primeiramente, diferenças de opiniões que geravam polêmicas. Em segundo lugar, muitos times terminavam a temporada invictos, com o mesmo número de vitórias de vários outros, o que impossibilitava a definição de que "Time A" era superior ao "Time B". Além do mais, frequentemente acontecia de uma agência creditar o título ao "Time X" e outra agência dar a honraria ao "Time Y". E, como se não bastasse, a pressão para que houvesse uma definição em campo cresceu ainda mais com a solidificação do March Madness, o evento que define o campeão do basquete universitário. Por todas estas razões houve na década de 1990 várias tentativas de atender ao apelo popular e os Bowls principais tentavam se alinhar de forma que possibilitasse os dois times mais fortes se enfrentarem em um dos New Year's Six. Nasceram assim a Bowl Coalition (1992), a Bowl Alliance (1995) e finalmente o Bowl Championship Series (1998). Funcionava assim: um computador criava um ranking onde eram abrigadas as equipes com melhor desempenho na temporada. A partir daí eram formados os Bowls de Ano Novo de forma que fosse possível que a equipe que ostentava ser a #1 no ranking enfrentasse a #2. O vencedor desse jogo seria declarado campeão nacional. Contudo, esse sistema resolveu um problema e criou outro. O Rose Bowl tradicionalmente coloca frente-a-frente o campeão da Big Ten Conference e o campeão da PAC-12. Por não aceitar as condições da Bowl Coalition o Rose Bowl acabou ficando de fora do sistema, e como em um efeito-dominó acabou retirando essas duas conferências de qualquer chance de disputar o título. Por exemplo: em 1994 a invicta Penn State (oriunda da Big Ten) enfrentou Oregon (da PAC-12) no Rose Bowl por força de contrato enquanto que outra equipe invicta, Nebraska, foi a Miami enfrentar os Hurricanes no Orange Bowl.  Se o sistema acolhesse as conferências do Rose Bowl a final nacional teria sido Penn State x Nebraska. O sistema também não incluía equipes que fora do chamado Power Five - as cinco conferências mais fortes (ACC, Big Ten, Big XII, PAC-12 e SEC) além de Notre Dame, equipe independente de conferência. Com isso a chance de um time de fora dessas conferências ser campeão nacional era zero. O grande problema é que, vez por outra, universidades de fora das conferências alinhadas faziam grandes campanhas que lhes permitiriam disputar o título. Os exemplos mais marcantes são de Boise State em 2009 e TCU em 2010. Ambas equipes terminaram a temporada de forma invicta. Boise State inclusive igualou o recorde histórico de 14-0 que apenas Ohio State em 2002 havia conseguido. Ambas equipes acabaram sendo declaradas campeãs nacionais por algumas agências, mas não podiam participar do BCS National Championship Games por fazerem parte de conferências do Group of Five - as cinco conferências mais fracas da primeira divisão do College Football. TCU inclusive acabou optando por se tornar uma Power Five a partir de 2012 se juntando a Big XII Conference. Veja no esquema abaixo como são divididas atualmente as conferências da primeira divisão do futebol americano universitário: 
Chegamos então ao ano de 2014 e ao menos problemático de todos os sistemas já criados. o College Football Playoffs ainda está longe da perfeição, mas avança no sentido de não deixar à mercê da tecnologia e de contratos televisivos um título nacional. Um comitê é responsável por elaborar um ranking com as 25 melhores equipes do país. As quatro melhores recebem então a vaga nos playoffs nacionais. Como comentado anteriormente, dois New Year's Bowls abrigam as semifinais e os vencedores se enfrentam valendo a taça. Os campeões de cada uma das cinco conferências maiores garantem a vaga em ao menos um desses Bowls. Há algumas semanas  foi realizada uma pesquisa para uma possível expansão dos playoffs que contariam com os cinco campeões das conferências Power Five, as duas equipes mais bem ranqueadas que não tenham sido campeãs, além de um representante do Group of Five. Com isso teríamos de fato os melhores times do país jogando pelo título nacional com total justiça. É o sistema que mais se aproxima da perfeição e poderá ser instituído nos próximos anos. 

150 anos de história e filantropia: ou não? 


Caso você esteja se perguntando qual o salário de um jogador universitário a resposta não poderia ser mais simples: absolutamente nada. As regras da NCAA não permitem que os jogadores sejam pagos por seus serviços. Porém, em troca de anos de esporte pela instituição eles recebem algo que pode mudar suas vidas: um curso superior inteiramente gratuito. O jogador pode ficar entre três e cinco anos no College Football e não pagar nada por sua educação, apenas praticando esportes. Essa é uma troca que acaba sendo valiosa para ambas as partes. As universidades recebem muito dinheiro pelos seus times esportivos na forma de cotas de televisionamento, patrocínios e muitos outros meios. Em troca oferecem as chamadas sports scholarships a prospectivos alunos. Esses alunos podem depois tentar entrar no esporte profissional e aí sim fazer carreira. Para isso existem os Drafts (lembram do recrutamento militar?). Para ser elegível ao Draft um aluno precisa ter passado ao menos três anos no nível universitário. Existem Drafts para praticamente todas as ligas profissionais americanas. Os atletas que recebem as bolsas de estudos são, via de regra, jogadores que se destacaram atuando nas escolas de ensino médio. Aliás, se você assistiu a série Smallville: As Aventuras do Superboy talvez se lembre que Clark Kent era quarterback da equipe de futebol americano de sua escola - os Smallville Crows - e foi visitar as instalações da Metropolis University visando uma bolsa de estudos. Por exemplo: imagine que certo João da Silva tenha sido um excepcional talento como quarterback de high school (ensino médio) de sua cidade, São Paulo. Analistas de várias universidades brasileiras poderiam oferecer-lhe bolsas de estudos para continuar seus estudos e jogar no College. Imagine que João tenha recebido propostas da USP, UFRJ, UFRGS e UFBA. Ele poderia escolher a USP para ficar mais perto de casa e sua família. Por outro lado, talvez ele se sinta tentado a ir para a Bahia por conta do clima mais quente e das praias. Ou ainda pode querer ir para o Rio de Janeiro por ser um grande fã de carnaval. Ou ainda uma quarta hipótese poderia ser o atleta ir para o Rio Grande do Sul porque seu pai ou outro parente atuou por esta universidade e ele queira manter o legado da família. O dia que o jogador decide qual seu destino é chamado de National Signing Day e é um grande divisor de águas para o atleta, sua família e para o programa escolhido. Ter um jogador de elite em sua equipe pode ser a diferença entre o título nacional e uma campanha pífia. Então, por mais que pareça que os treinadores e analistas das universidades são "bons samaritanos" oferecendo educação gratuita a jovens carentes, a instituição também se beneficia com os atletas.

Recruit | Smallville Wiki | Fandom
Até super-heróis as vezes precisam de uma "forcinha" para entrar na universidade

Redshirt, freshman, sophomore, junior, senior, rookie... 


Se você nunca ouviu falar nessas palavras ou simplesmente não faz a menor ideia do que elas vem a significar, acredite: é mais fácil que você pode imaginar. Essas expressões remontam a Inglaterra do Século XVII e eram usados na Universidade de Cambridge. No cenário americano as expressões freshman, sophomore, junior e senior são facilmente compreendidas não apenas nas universidades  (onde um estudante leva em média quatro anos para completar seu bacharelado) mas também no ensino médio (sim, o ensino médio americano tem quatro anos). Um freshman é alguém que está no seu primeiro ano, um sophomore está no segundo, um junior no terceiro e um senior no quarto. Porém, em 1937 Warren Alfson revolucionou as regras de elegibilidade do College Football. O jogador que atuava tanto no ataque quanto na defesa da Universidade do Nebraska solicitou ao seu treinador que permitisse que ele treinasse com a equipe mas não jogasse, ganhando assim mais um ano de elegibilidade. A estratégia deu certo. Após um primeiro ano onde ele praticamente não havia atuado, Alfson  se tornou o primeiro redshirt de quem se há registro. Ficando sem atuar no seu segundo ano, Alfson voltou para os três anos seguintes como titular da equipe, foi eleito Second Team All-American em 1939 e foi draftado pelo New York Dodgers (hoje extinto). Infelizmente, sua carreira profissional durou apenas em sua temporada de rookie pois o irrompimento da Segunda Guerra Mundial o levou ao combate pela Marinha Americana. Sobrevivente de guerra, o inventor da redshirt faleceu em 2001 aos 86 anos de idade.
  • Freshman - atleta em seu primeiro ano acadêmico e esportivo no College;
  • Sophomore - atleta em seu segundo ano acadêmico e esportivo no College;
  • Junior - atleta em seu terceiro ano acadêmico e esportivo no College;
  • Senior - atleta em seu quarto ano acadêmico e esportivo no College;
  • Redshirt freshman - atleta em seu segundo ano acadêmico, mas primeiro ano elegível no College devido a ter ficado um ano apenas treinando com a equipe;
  • Redshirt sophomore - atleta em seu terceiro ano acadêmico, mas segundo ano elegível no College devido a ter ficado um ano apenas treinando com a equipe;
  • Fourth-year junior - atleta em seu quarto ano acadêmico, mas terceiro ano elegível no College devido a ter ficado um ano apenas treinando com a equipe;
  • Five-year senior - atleta em seu quinto ano acadêmico, mas quarto ano elegível no College devido a ter ficado um ano apenas treinando com a equipe;
  • Rookie - atleta calouro na NFL, podendo ter sido escolhido no Draft ou assinado como um Undrafted Free Agent;

Heisman Trophy: The American Dream


No Brasil é mais que comum vermos garotos que sonham em ser jogadores de futebol. Alguns se imaginam erguendo um troféu de Copa do Mundo representando a camisa canarinho ou se vêem erguendo aos céus a taça da UEFA Champions League com toda sua pompa. Nos Estados Unidos não é muito diferente. Milhões de garotos sonham ter um anel de campeão da NFL, da NBA, da MLB ou da NHL. Mas, antes de serem coroados os melhores jogadores profissionais do país, há um troféu que faz a ambição do atleta aumentar exponencialmente: o Heisman Trophy. Como já comentado no artigo anterior desta série, John Heisman fez parte do comitê que alterou as regras do College Football e foi o grande responsável pela permissão do passe para frente. Ele também foi um dos maiores treinadores universitários de todos os tempos chegando a dirigir simultaneamente os times de futebol americano, basquete e beisebol de Georgia Tech University. Por conta de suas realizações em prol do esporte ele recebeu a honra de ter seu nome no mais importante prêmio individual do esporte universitário, dado ao jogador mais impressionante e extraordinário da temporada - um engano comum reza que o Heisman Trophy é dado ao melhor jogador universitário. Via de regra vencido por quarterbacks, nos últimos vinte anos apenas em três vezes o vencedor não era um passador (confira na lista abaixo).

Jason Gay: Occupy Wall Street's Neighbor—Heisman Trophy - WSJ


Evidentemente, além do Heisman Trophy existem outros prêmios no College Football. Por exemplo, o Lou Groza Award, dado ao melhor kicker universitário já foi ganho pelo brasileiro Cairo Santos e pelo americano filho de mãe brasileira Rodrigo Blankenship. 

Entrevista com Cairo Santos
Brasileiro Cairo Santos recebe o Lou Groza Award como melhor kicker universitário em 2012
Infelizmente não é comum no Brasil termos esse tipo de organização esportiva universitária, porém podemos nos encantar com a forma americana de lidar com esse assunto. Jovens que não teriam uma chance de fazer um curso superior não apenas o fazem gratuitamente, garantindo um futuro para sua família, mas também podem realizar seu sonho de infância de conquistar o Lombardi Trophy, o troféu mais desejado da América. Se o The American Dream prega a busca pelo sucesso e pela prosperidade por meio do trabalho duro e da dedicação, o America's Game prova que essa filosofia pode ser alcançada sem perder de vista a paixão do indivíduo. 

Confira aqui os demais textos dessa série:

America's Game I: A Doutrina do Destino Manifesto e o orgulho patriótico cria o mais americano de todos os esportes

America's Game II: NCAA: como um bando de jovens e uma atração turística de inverno transformaram o país 


America's Game VI: The World's Game


- Matheus Pereira de Pinho com a colaboração de Paulo Castro

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