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Sobre férias, novos amores e jornais velhos






Era uma noite fria de sexta-feira. Salvo engano, início de 1998. Eu, então com 7 anos, do alto do meu beliche de madeira e cheio de cobertores, temia o sábado que estava por vir. Teria que acordar cedo na manhã seguinte para ir ao posto de saúde. Nao me recordo qual era o surto que tomava conta da cidade, mas para qualquer criança normal, vacina é sinônimo de medo e sofrimento. Preocupado com o que o destino me reservava, não conseguia dormir. A tv de tubo ligada num volume alto para o horário, mostrava uma briga de casal por conta de um tal DNA mal resolvido. Aquilo parecia ser grave, pois a esposa deu um belo tapa no marido. Talvez fosse uma conta que o coitado deixou de pagar. Se tem uma coisa que percebi desde cedo, é que adultos brigavam por falta de dinheiro. Veio o intervalo e o anúncio de um filme com Pernalonga, Patolino e os Looney Tunes me chamou a atenção. Eu os adorava. Não perdia um sábado Animado, ou TV Cruj. Porém, nunca tinha visto aqueles 'Ets' verdes horríveis, e muito menos aquele homem alto e forte que voava com a bola de basquete nas mãos. Havia achado a solução para esquecer da maldita agulha. Abaixei o volume da tv. Vi os seres de outro planeta sequestrarem os pobres personagens. Para que eles fossem libertados, deveriam vencê-los numa partida de basquete. Seria fácil, afinal, eram pequenos, mas de repente se tornaram enormes e fortes. Pelo que entendi, tinham roubado os talentos de jogadores de verdade. Indefesos, foram pedir socorro a um tal de Michael Jordan. Vi ele sumir num buraco de golfe, beber sua garrafa com água mágica e chorei - como criança - quando ele fez a cesta da vitória.

Acordei com muito sono, porém feliz. E no caminho até o posto perguntei ao meu pai "quem era Michael Jordan?!"

- O melhor jogador de basquete do mundo filho. Ele respondeu.

- Eu vi mesmo, pai. Ele ganhou dos 'ets' e salvou os Looney Tunes da prisão.

Ele, sem entender nada, apenas sorriu.

Cresci em frente a uma praça com quadra e, até meus 13 anos, nunca vi uma partida de bola laranja. Mas era tarde. Já tinha me apaixonado.

Como toda criança que se preze, passava várias férias na casa de meus avós. Numa delas, perguntei ao meu avô "se ele conhecia Michael Jordan?!"

- O melhor jogador de basquete da história. Joga pelo Chicago Bulls. Ele têm o Scottie Pippen também, e um outro meio maluco de cabelo colorido e tatuagens. Não me lembro do nome dele... Dennis Rodman!
- Ele é muito bom mesmo vô, ganhou dos ets malvados e salvou os Looney Tunes.

Ele, assim como meu pai, apenas riu sem saber o que eu estava falando. Veio a pergunta derradeira:

- Vô, o que é tatuagem?
- São desenhos feitos no corpo com agulhas e tinta.
- Deus me livre vô, odeio agulhas!

Você que é mais novo pode se espantar com o que vou dizer, mas não, no começo do século, as casas não vinham com Tv a cabo e Wi-Fi embutidos. Embora não nos faltasse comida, roupas e material escolar, até onde lembro nunca tinha ouvido falar daquela tal internet. Descobri o que era aquilo que quando você ligava para alguém fazia um chiado horrível no telefone. Meu avô tinha na época. E passei a pesquisar sobre esse  'tal' Chicago Bulls, que era tão bom. Ele me disse que nas páginas dos jornais sempre havia a seção de placares e classificação da  NBA,  e como o tal computador era disputado, passava horas após o delicioso café da minha avó folheando aqueles jornais velhos, as vezes de semanas e meses anteriores, que ele fazia questão de guardar para mim. Eles sempre perdiam, mas eu não ligava. Era meu time e pronto.

Anos depois, morando em um  apartamento e já sem meu pai em casa - por motivos que só fui entender anos mais tarde -, conheci a ESPN numa noite, e vi que passavam os jogos. Fiquei muito alegre. Era meu momento de descontração em meio aos problemas, incertezas e medos que a adolescência trazia. Nova escola, novos colegas, nova família. Vi surgirem LeBron James, Carmelo Anthony, Dwyane Wade. Vi aquele Lakers de Kobe e Shaq. O Spurs de Tim Duncan e Manu. E os problemas iam embora durante as madrugadas. O meu Bulls passava pouco, Michael já não estava entre eles e o time não era grande coisa.

Mas eu seguia torcendo e acompanhando sempre que podia, afinal, um grande amor só dá certo quando você se dedica a ele.

Chegando perto da fase adulta, com mais responsabilidades e condições financeiras, o basquete ficou mais acessível. Um celular, uma internet que já não era pré- histórica, um Air Jordan que valia quase todo o salário. Ali o mundo que eu aprendi a amar estava mais perto. No ensino médio, a cultura de rua e a bola laranja estavam mais presentes. Conheci as músicas do Eminem, os tênis And1, as calças folgadas e as regatas do Allen Iverson. Aquele era meu mundo. Saudades dos amigos que nunca mais vi, das primeiras paqueras e dos amores platônicos, das aulas cabuladas e do suor das aulas de educação física.

Meu primeiro pagamento destinei à camisa de um jovem que surgia em Illinois como alguém que levaria Chicago ao topo novamente: Derrick Rose. Eu a tenho até hoje, surrada e já sem tanto brilho no meu guarda roupa. Chorei ao vê-lo ser o MVP mais jovem da história e muito mais naquele jogo 5 das Finais do Leste de 2011. Desde então, o meu segundo ídolo nunca mais foi o mesmo, e eu sinto muito por isso.

Talvez o basquete se pareça mais com aquele amor que, segundo os entendidos no assunto, só aparece uma vez. Diferente do futebol, que é amor igual de mãe, já nasce conosco e não importa o que aconteça ele estará lá para nos acolher, a bola laranja é aquela garota linda que você conhece no corredor, chama pra tomar um sorvete, começam a namorar e fazem a vida juntos. Não sei dizer com certeza se prefiro os tempos de criança. Foram tempos difíceis.

Hoje, o notebook, o League Pass, o smartphone e o trabalho remunerado me deixam mais próximo do esporte que eu aprendi a amar. É possível ver 3 ou 4 jogos simultaneamente e ter um tênis ou boné maneiro. Mas a certeza que eu tenho é que a lembrança dos jornais velhos, do cheiro de bolo quente e das noites mal dormidas no beliche jamais irão embora. Talvez aquele garoto tímido que vive dentro de mim  só queira um novo motivo para chorar, à espera do dia em que o seu time de coração volte às manchetes dos jornais.

Até lá, sigo com as responsabilidades e a rotina de um homem feito, sem esquecer e agradecendo pelo dia que conheci meu novo amor naquela noite fria de sexta feira.

Créditos da imagem: cinelek.com

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